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A história do tratamento da melancolia - primeiro capítulo do livro de Jean Starobinski

  • Foto do escritor: Cibele Scarpelin
    Cibele Scarpelin
  • 20 de abr. de 2020
  • 5 min de leitura

Como eu tinha escrito no último post, me coloquei a tarefa de escrever sobre os capítulos do livro “A tinta da Melancolia”, de Jean Starobinski.


A parte I do livro tem o título “História do tratamento da melancolia” e o autor nos mostra os primeiros registros desse estado doloroso que hoje chamamos de depressão.

Nos dias de hoje, como é o tratamento de alguém com depressão? O sujeito pode buscar se autodiagnosticar pelo google (como alguns chegam dizendo no meu consultório), procurar um psiquiatra, psicólogo ou psicanalista. O tratamento é feito pela fala e/ou através do uso de medicamentos. Dependendo do tipo de tratamento, entende-se que a depressão tem causas orgânicas e/ou psíquicas e é visto como algo que tem cura, não tem cura, ou que pode ter uma saída criativa de convivência com o estado depressivo.


Resumindo: O que é depressão? Qual é o tratamento? Tem cura? O que Jean Starobinski nos mostra é que cada época tem uma forma diferente de responder a essas questões e ficamos impressionados de saber de algumas formas de tratamento.


Uma ideia que perdurou por muito tempo e que apareceu na antiguidade, é que nosso corpo produz uma substância grossa, corrosiva e tenebrosa que foi chamada de bile negra. O excesso ou alteração dessa substância no nosso corpo compromete a harmonia dos humores. Essa alteração produz a melancolia. O que é um sofrimento insuportável, vem acompanhado do privilégio, por outro lado, de uma inteligência superior, vocação poética e filosófica, marcando a visão que temos da melancolia até hoje.


Para seu tratamento os antigos indicavam uma substância, um extrato de uma raiz chamada heléboro, que produzia diarreias e vômitos. Essa substância pode provocar fezes pretas ou hemorrágicas, por isso os antigos tinham a ilusão de terem tirado a bílis preta do organismo. Além disso, aparecem alguns relatos de terapias de encorajamento, que é afastar o doente daquilo que causa pavor e distraí-lo com histórias, jogos e elogiá-lo.


Já no mundo cristão, na Idade Média, a melancolia é dividida entre doença do corpo e doença da alma. Se for constatado que o sujeito se deixou abater pela melancolia, ele será culpado e seu estado considerado pecado. Além disso, a melancolia aparece frequentemente em indivíduos reclusos, homens e mulheres que se dedicam à vida monástica. Nesse sentido, o remédio é o trabalho contra a vida solitária. Segundo Starobinski, para tratar a melancolia na Idade Média, retomando a antiguidade, é necessário a observação de seis condições na vida do sujeito: o ar, os alimentos e as bebidas, a retenção e a expulsão, o exercício e o repouso, o sono e a vigília, as paixões da alma.


No Renascimento, a melancolia ganha destaque sendo ligada ao poeta, ao artista, ao príncipe e ao verdadeiro filósofo.


Trabalhando ainda com a idéia de bílis negra, os médicos nesse período tinham quase um consenso sobre os tipos de medicamentos que deveriam ser usados contra a melancolia: os evacuativos (para expulsar a bílis negra do corpo), os alterativos (para diluir e suavizar a bílis negra do corpo), e os confortativos (para devolver vigor e alegria ao paciente).


“Nossas psicoterapias modernas pretendem realizar no nível do eu efeitos análogos aos que os terapeutas do passado tentavam obter no nível do corpo. Acreditando agir sobre a causa material da doença, eles praticavam, sem saber, um tratamento psicológico em que a afetividade do doente era constantemente solicitada, embora se tratasse só de seu corpo. Na verdade, a prática de evacuativos, dos diluentes e dos roborativos obrigava o paciente a “somatizar” a sua representação da doença e a imitar com o corpo o processo da “catarse” e da reconstrução psíquica. O método devia, talvez, contar com alguns sucessos para se transmitir com tanta regularidade de uma geração a outra.” (Starobinski, p. 59).


Um dos médicos desse período, sugere beber leite de mulher para proporcionar um rejuvenescimento e montar a cavalo quase todo dia, para “animar” o sangue e os espíritos.

Enfim, na época moderna, houve uma maior identificação da melancolia como uma desregulação das operações nervosas. O sistema nervoso é o responsável pelas impressões, sensações, e percepções dos indivíduos. A melancolia passa a ser entendida como a doença do ser sensível. A definição que vai prevalecer é a de que a melancolia é o predomínio de uma “ideia exclusiva”, um falso julgamento que o doente faz sobre si e sofre por isso. O tratamento, então, é destruir essa ideia fixa do paciente. Mas como fazer isso?


A descrição dos métodos de tratamento dessa época vai de criativa à cruel. Pode-se ministrar medicamentos aos pacientes mesmo que se saiba que ele não terá efeito, pois é melhor prescrever um medicamento sem efeito a não prescrever nada. Há também a “fraude caridosa” em que o médico finge acreditar no paciente para que esse passe a confiar no médico, fazendo com que seja destruída a ideia fixa. Muitas vezes eram feitos verdadeiros teatros para os doentes, como o exemplo histórico que Starobinski nos traz de Pinel:


“Às vezes é muito urgente destruir certas ideias quiméricas que dominam os melancólicos a ponto de impedi-los, em certos casos, de satisfazer as necessidades mais urgentes. Um melancólico imaginava estar morto, e por conseguinte não queria comer. Todos os meios empregados para fazê-lo ingerir algum alimento fracassaram: ele corria o risco de morrer de fome quando um de seus amigos teve a ideia de fingir-se de morto. Pôs-se este último num caixão diante do melancólico e alguns momentos depois deram-lhe o jantar: o melancólico, vendo o falso morto comer, pensou que podia fazer o mesmo e se impôs o dever de imitá-lo” (Starobinski, p. 74).


Quando a causa melancolia é atribuída a “hábitos degradantes”, ou seja, a uma vida sexual considerada errada ou vergonhosa, o médico pode ser um verdadeiro carrasco. Ele pode aplicar “formas inofensivas de tortura”, como as cócegas, cassetetes, a ducha e uma pomada cujo efeito vai até a necrose do osso.


Sobre a ducha ela será um importante tratamento moral para a melancolia nessa época. Quem passasse uma vez por esse tratamento tratava de parecer ter melhorado para não correr o risco de ser conduzido a ele de novo. Era jogado água gelada na cabeça do paciente, fazendo parecer que uma pedra de gelo estava caindo sobre ele. A dor era muito aguda.


Um tratamento curioso foram as piruetas. Coloca-se o paciente em uma máquina giratória, havendo relatos de cura de enxaqueca do melancólico, por exemplo.


A forma de tratamento mais inofensiva e agradável dessa época, talvez, seja a viagem. Principalmente em lugares com climas mais escuros e frios, ou grandes cidades, aconselha-se a fazer uma viagem a climas melhores, com mais luz, próximo da natureza e fugindo da angústia da vida agitada. A viagem a fontes naturais de água quente e curativas passam a ser os preferidos da média burguesia.


O tratamento com música também passa a ser considerado, mas é tratado como um método confuso. Por alguns autores é visto como uma função recreativa, por outros é visto como inofensivo ou até mesmo podendo atrapalhar o estado melancólico.


Uma das observações mais importantes dessa época é que a melancolia é frequentemente hereditária.


A partir do século XIX, época de expansão industrial, invenções físicas e descobertas químicas, a melancolia passa a ser alvo de uma série de tentativas de tratamento. Medicamentos antigos como o ópio, o suco ou grãos de papoula e o láudano continuaram a ser usados, e outros entraram no cenário do tratamento. Em 1890, Kavalesky pensou na cocaína como um analgésico para tratar a melancolia.


A partir de 1900 começou a se reconhecer que não há um tratamento específico para a melancolia, não há cura. Os medicamentos passam, então, a serem usados como tratamento para aliviar os sintomas. Se reconhece que é o próprio paciente que pode mudar a sua condição.

 
 
 

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